sábado, 23 de abril de 2011

Aula de 26 de abril

Carlos Drummond de Andrade: Coração numeroso

Foi no Rio.
Eu passava na Avenida quase meia-noite.
Bicos de seio batiam nos bicos de luz estrelas inumeráveis.
Havia a promessa do mar
e bondes tilintavam,
abafando o calor
que soprava no vento
e o vento vinha de Minas.

Meus paralíticos sonhos desgosto de viver
(a vida para mim é vontade de morrer)
faziam de mim homem-realejo imperturbavelmente
na Galeria Cruzeiro quente quente
e como não conhecia ninguém a não ser o doce vento mineiro,
nenhuma vontade de beber, eu disse: Acabemos com isso.

Mas tremia na cidade uma fascinação casas compridas
autos abertos correndo caminho do mar
voluptuosidade errante do calor
mil presentes da vida aos homens indiferentes,
que meu coração bateu forte, meus olhos inúteis choraram.

O mar batia em meu peito, já não batia no cais.
A rua acabou, quede as árvores? a cidade sou eu
a cidade sou eu
sou eu a cidade
meu amor.


Jorge Luís Borges: Límites

Hay una línea de Verlaine que no volveré a recordar,
Hay una calle próxima que está vedada a mis pasos,
Hay un espejo que me ha visto por última vez,
Hay una puerta que he cerrado hasta el fin del mundo.
Entre los libros de mi biblioteca (estoy viéndolos)
Hay alguno que ya nunca abriré.
Este verano cumpliré cincuenta años:
La muerte me desgasta, incesante.

Tradução de Antonio Cicero: Limites

Há uma linha de Verlaine que não voltarei a recordar,
Há uma rua próxima que está vedada a meus passos,
Há um espelho que me viu pela última vez,
Há uma porta que fechei até o fim do mundo.
Entre os livros de minha biblioteca (estou vendo-os)
Há algum que já nunca abrirei.
Este verão cumprirei cinqüenta anos:
A morte me desgasta, incessante.


Jorge Luís Borges: El suicida

No quedará en la noche una estrella.
No quedará la noche
Moriré y conmigo la suma
Del intolerable universo.
Borraré las pirámides, las medallas,
Los continentes y las caras.
Borraré la acumulación del pasado.
Haré polvo la historia, polvo el polvo.
Estoy mirando el último poniente.
Oigo el último pájaro.
Lego la nada a nadie.

Tradução de Antonio Cicero: O suicida

Não ficará na noite uma estrela.
Não ficará a noite.
Morrerei e comigo a suma
Do intolerável universo.
Apagarei as pirâmides, as medalhas,
Os continentes e as caras.
Apagarei a acumulação do passado.
Farei pó a história, pó o pó.
Estou olhando o último poente.
Ouço o último pássaro.
Lego o nada a ninguém.

T.S. Eliot: Ash Wednesday


I
Because I do not hope to turn again
Because I do not hope
Because I do not hope to turn
Desiring this man's gift and that man's scope
I no longer strive to strive towards such things
(Why should the aged eagle stretch its wings?)
Why should I mourn
The vanished power of the usual reign?

Because I do not hope to know again
The infirm glory of the positive hour
Because I do not think
Because I know I shall not know
The one veritable transitory power
Because I cannot drink
There, where trees flower, and springs flow, for there is nothing again

Because I know that time is always time
And place is always and only place
And what is actual is actual only for one time
And only for one place
I rejoice that things are as they are and
I renounce the blessed face
And renounce the voice
Because I cannot hope to turn again
Consequently I rejoice, having to construct something
Upon which to rejoice

And pray to God to have mercy upon us
And pray that I may forget
These matters that with myself I too much discuss
Too much explain
Because I do not hope to turn again
Let these words answer
For what is done, not to be done again
May the judgement not be too heavy upon us

Because these wings are no longer wings to fly
But merely vans to beat the air
The air which is now thoroughly small and dry
Smaller and dryer than the will
Teach us to care and not to care
Teach us to sit still.

Pray for us sinners now and at the hour of our death
Pray for us now and at the hour of our death.

Tradução de Ivan Junqueira:
Quarta-feira de cinzas

I
Porque não mais espero retornar
Porque não espero
Porque não espero retornar
A este invejando-lhe o dom e àquele o seu projeto
Não mais me empenho no empenho de tais coisas
(Por que abriria a velha águia suas asas?)
Por que lamentaria eu, afinal,
O esvaído poder do reino trivial?

Porque não mais espero conhecer
A vacilante glória da hora positiva
Porque não penso mais
Porque sei que nada saberei
Do único poder fugaz e verdadeiro
Porque não posso beber
Lá, onde as árvores florescem e as fontes rumorejam,
Pois lá nada retorna à sua forma

Porque sei que o tempo é sempre o tempo
E que o espaço é sempre o espaço apenas
E que o real somente o é dentro de um tempo
E apenas para o espaço que o contém
Alegro-me de serem as coisas o que são
E renuncio à face abençoada
E renuncio à voz
Porque esperar não posso mais
E assim me alegro, por ter de alguma coisa edificar
De que me possa depois rejubilar

E rogo a Deus que de nós se compadeça
E rogo a Deus porque esquecer desejo
Estas coisas que comigo por demais discuto
Por demais explico
Porque não mais espero retornar
Que estas palavras afinal respondam
Por tudo o que foi feito e que refeito não será
E que a sentença por demais não pese sobre nós

Porque estas asas de voar já se esqueceram
E no ar apenas são andrajos que se arqueiam
No ar agora cabalmente exíguo e seco
Mais exíguo e mais seco que o desejo
Ensinai-nos o desvelo e o menosprezo
Ensinai-nos a estar postos em sossego.

Rogai por nós pecadores agora e na hora de nossa morte
Rogai por nós agora e na hora de nossa morte.


Fernando Pessoa: O Infante

Deus quer, o homem sonha, a obra nasce.
Deus quis que a terra fosse toda uma,
Que o mar unisse, já não separasse.
Sagrou-te, e foste desvendando a espuma.

E a orla branca foi de ilha em continente,
Clareou, correndo, até ao fim do mundo,
E viu-se a terra inteira, de repente,
Surgir, redonda, do azul profundo.

Quem te sagrou criou-te português.
Do mar e nós em ti nos deu sinal.
Cumpriu-se o Mar, e o Império se desfez.
Senhor, falta cumprir-se Portugal!


Fernando Pessoa: Padrão

O esforço é grande e o homem é pequeno.
Eu, Diogo Cão, navegador, deixei
Este padrão ao pé do areal moreno
E para diante naveguei.

A alma é divina e a obra é imperfeita.
Este padrão sinala ao vento e aos céus
Que, da obra ousada, é minha a parte feita:
O por-fazer é só com Deus.

E ao imenso e possível oceano
Ensinam estas Quinas, que aqui vês,
Que o mar com fim será grego ou romano:
O mar sem fim é português.

E a Cruz ao alto diz que o que me há na alma
E faz a febre em mim de navegar
Só encontrará de Deus na eterna calma
O porto sempre por achar.


Fernando Pessoa: O Quinto Império

Triste de quem vive em casa,
Contente com o seu lar,
Sem que um sonho, no erguer de asa,
Faça até mais rubra a brasa
Da lareira a abandonar!

Triste de quem é feliz!
Vive porque a vida dura.
Nada na alma lhe diz
Mais que a lição da raiz -
Ter por vida a sepultura.
Eras sobre eras se somem
No tempo que em eras vem.
Ser descontente é ser homem.
Que as forças cegas se domem
Pela visão que a alma tem!

E assim, passados os quatro
Tempos do ser que sonhou,
A terra será teatro
Do dia claro, que no atro
Da erma noite começou.

Grécia, Roma, Cristandade,
Europa - os quatro se vão
Para onde vai toda idade.
Quem vem viver a verdade
Que morreu D. Sebastião?


Fernando Pessoa: Mar Português

Ó mar salgado, quanto do teu sal
São lágrimas de Portugal!
Por te cruzarmos, quantas mães choraram,
Quantos filhos em vão rezaram!
Quantas noivas ficaram por casar
Para que fosses nosso, ó mar!

Valeu a pena? Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena.
Quem quer passar além do Bojador
Tem que passar além da dor.
Deus ao mar o perigo e o abismo deu,
Mas nele é que espelhou o céu.


Fernando Pessoa: D. João, Infante de Portugal

Não fui alguém. Minha alma estava estreita
Entre tão grandes almas minhas pares,
Inutilmente eleita,
Virgemmente parada;

Porque é do português, pai de amplos mares,
Querer, poder só isto:
O inteiro mar, ou a orla vã desfeita -
O todo, ou o seu nada.


Fernando Pessoa: Ulisses

Este, que aqui aportou,
Foi por não ser existindo.
Sem existir nos bastou.
Por não ter vindo foi vindo
E nos criou.

Assim a lenda se escorre
A entrar na realidade,
E a fecundá-la decorre.
Em baixo, a vida, metade
De nada, morre.


Fernando Pessoa: Deixo ao cego e ao surdo

Deixo ao cego e ao surdo
A alma com fronteiras,
Que eu quero sentir tudo
De todas as maneiras.

Do alto de ter consciência
Contemplo a terra e o céu,
Olho-os com inocência...
Nada que vejo é meu.

Mas vejo tão atento
Tão neles me disperso
Que cada pensamento
Me torna já diverso.

E como são estilhaços
Do ser, as coisas dispersas
Quebro a alma em pedaços
E em pessoas diversas.

E se a própria alma vejo
Com outro olhar,
Pergunto se há ensejo
De por isto a julgar.

Ah, tanto como a terra
E o mar e o vasto céu.
Quem se crê próprio erra,
Sou vário e não sou meu.

Se as coisas são estilhaços
Do saber do universo,
Seja eu os meus pedaços,
Impreciso e diverso.

Se quanto sinto é alheio
E de mim se sente,
Como é que a alma veio
A acabar-se em ente?

Assim eu me acomodo
Com o que Deus criou,
Deixo teu diverso modo
Diversos modos sou.

Assim a Deus imito,
Que quando fez o que é
Tirou-lhe o infinito
E a unidade até.


Fernando Pessoa: Gato que brincas na rua

Gato que brincas na rua
Como se fosse na cama,
Invejo a sorte que é tua
Porque nem sorte se chama.

Bom servo das leis fatais
Que regem pedras e gentes,
Que tens instintos gerais
E sentes só o que sentes.

És feliz porque és assim,
Todo o nada que és é teu.
Eu vejo-me e estou sem mim,
Conheço-me e não sou eu.


Fernando Pessoa / Alberto Caeiro: Não basta abrir a janela

Não basta abrir a janela
Para ver os campos e o rio.
Não é bastante não ser cego
Para ver as árvores e as flores.
É preciso também não ter filosofia nenhuma.
Com filosofia não há árvores: há ideias apenas.
Há só cada um de nós, como uma cave.
Há só uma janela fechada, e todo o mundo lá fora;
E um sonho do que se poderia ver se a janela se abrisse,
Que nunca é o que se vê quando se abre a janela.


Fernando Pessoa / Alberto Caeiro: As bolas de sabão que esta criança

As bolas de sabão que esta criança
Se entretém a largar de uma palhinha
São translucidamente uma filosofia toda.
Claras, inúteis e passageiras como a Natureza,

Amigas dos olhos como as coisas,
São aquilo que são
Com uma precisão redondinha e aérea,
E ninguém, nem mesmo a criança que as deixa,
Pretende que elas são mais do que parecem ser.

Algumas mal se vêem no ar lúcido.
São como a brisa que passa e mal toca nas flores
E que só sabemos que passa
Porque qualquer coisa se aligeira em nós
E aceita tudo mais nitidamente.


Fernando Pessoa / Alberto Caeiro: Há metafísica bastante em não pensar em nada

Não acredito em Deus porque nunca o vi.
Se ele quisesse que eu acreditasse nele,
Sem dúvida que viria falar comigo
E entraria pela minha porta dentro
Dizendo-me, Aqui estou!

(Isto é talvez ridículo aos ouvidos
De quem, por não saber o que é olhar para as coisas,
Não compreende quem fala delas
Com o modo de falar que reparar para elas ensina.)

Mas se Deus é as flores e as árvores
E os montes e sol e o luar,
Então acredito nele,
Então acredito nele a toda a hora,
E a minha vida é toda uma oração e uma missa,
E uma comunhão com os olhos e pelos ouvidos.

Mas se Deus é as árvores e as flores
E os montes e o luar e o sol,
Para que lhe chamo eu Deus?
Chamo-lhe flores e árvores e montes e sol e luar;
Porque, se ele se fez, para eu o ver,
Sol e luar e flores e árvores e montes,
Se ele me aparece como sendo árvores e montes
E luar e sol e flores,
É que ele quer que eu o conheça
Como árvores e montes e flores e luar e sol.

E por isso eu obedeço-lhe,
(Que mais sei eu de Deus que Deus de si próprio?),
Obedeço-lhe a viver, espontaneamente,
Como quem abre os olhos e vê,
E chamo-lhe luar e sol e flores e árvores e montes,
E amo-o sem pensar nele,
E penso-o vendo e ouvindo,
E ando com ele a toda a hora.


Fernando Pessoa / Ricardo Reis: Não consentem os deuses mais que a vida

Não consentem os deuses mais que a vida.
Tudo pois refusemos, que nos alce
A irrespiráveis píncaros,
Perenes sem ter flores.
Só de aceitar tenhamos a ciência,
E, enquanto bate o sangue em nossas fontes,
Nem se engelha connosco
O mesmo amor, duremos, Como vidros, às luzes transparentes
E deixando escorrer a chuva triste,
Só mornos ao sol quente,
E reflectindo um pouco.

Fernando Pessoa / Ricardo Reis: Tão cedo passa tudo quanto passa

Tão cedo passa tudo quanto passa!
Morre tão jovem ante os deuses quanto
Morre! Tudo é tão pouco!
Nada se sabe, tudo se imagina. Circunda-te de rosas, ama, bebe
E cala. O mais é nada.


Fernando Pessoa / Ricardo Reis: Já sobre a fronte vã se me acinzenta

Já sobre a fronte vã se me acinzenta
O cabelo do jovem que perdi.
Meus olhos brilham menos,
Já não tem jus a beijos minha boca.
Se me ainda amas, por amor não ames:
Traíras-me comigo.

4 comentários:

  1. MEMÓRIA
    aqui el faz um frio desgraçado
    um frio qu’ o meu lençol não ‘squenta
    e o vento que pela minh’ alma venta
    é o tal que tem no meu olho alquebrado

    mariprismas das ondas do passado
    que por mim ondeiam e que rebenta
    a quilha – e o mastro do céu alcançado –
    mas éolo só ventos do norte venta

    olha lá! já vai longe o peixespada
    pro outro lado longe de mim e minha
    harpa! o qu’ ora farei sem mi’a caça?!

    ah volte a cortamares em mi’a ’spinha
    volte e me consagre esta tua ’spada
    para qu’ eu corte d’ horizonte a linha!

    ResponderExcluir
  2. SONETO EM ROXO

    Pintei de roxo as dores em meu peito
    e as chamadas de um nome, sem respostas.
    Flores sombrias, talvez estejam mortas.
    estranguladas em um vaso estreito.

    Conclamem todo o roxo da paixão:
    há um tanque de dor aqui vazando.
    Berinjelas, violetas consolando
    e o vinho do langor, de prostração.

    Saudades dos chupões no meu pescoço,
    de olheiras cor de ameixa, sem caroço,
    do cruzado de esquerda no olho, roxo.

    À luz difusa do abajour lilás,
    lamento a perda desse amor fugaz.
    Tarde demais. Tanto melhor. Muxoxo.

    ResponderExcluir