E como eu palmilhasse vagamente
Uma estrada de Minas, pedregosa,
E no fecho da tarde um sino rouco
Se misturasse ao som de meus sapatos
Que era pausado e seco; e aves pairassem
No céu de chumbo, e suas formas pretas
Lentamente se fossem diluindo
Na escuridão maior, vinda dos montes
E de meu próprio ser desenganado,
A máquina do mundo se entreabriu
Para quem de a romper já se esquivava
E só de o ter pensado se carpia.
Abriu-se majestosa e circunspecta,
Sem emitir um som que fosse impuro
Nem um clarão maior que o tolerável
Pelas pupilas gastas na inspeção
Contínua e dolorosa do deserto,
E pela mente exausta de mentar
Toda uma realidade que transcende
A própria imagem sua debuxada
No rosto do mistério sem abismos.
Abriu-se em calma pura, e convidando
Quantos sentidos e intuições restavam
A quem de os ter suado já os perdera
E nem desejaria recobrá-los
Se em vão e para sempre repetimos
Os mesmos sem roteiro tristes périplos,
Convidando-os a todos, em corte,
A se aplicarem sobre o pasto inédito
Da natureza mítica das coisas,
Assim me disse, embora voz alguma
Ou sopro ou eco ou simples percussão
Atestasse que alguém, sobre a montanha,
A outro alguém, noturno e miserável,
Em colóquio se estava dirigindo:
"O que procuraste em ti ou fora de
teu ser restrito e nunca se mostrou,
mesmo afetando dar-se ou se rendendo,
e a cada instante mais se retraindo,
olha, repara, auscuta: essa riqueza
sobrante a toda pérola, essa ciência
sublime e formidável, mas hermética,
essa total explicação da vida,
esse nexo primeiro e singular,
que nem concebes mais, pois tão esquivo
se revelou ante a pesquisa ardente
em que te consumiste...vê, contempla,
abre teu peito para agasalhá-lo".
As mais soberbas pontes e edifícios,
O que nas oficinas se elabora,
O que pensado foi e logo atinge
Distância superior ao pensamento,
Os recursos da terra dominados,
E as paixões e os impulsos e os tormentos
E tudo que define o ser terrestre
Ou se prolonga até nos animais
E chega às plantas para se embeber
No sono rancoroso dos mistérios,
Dá volta ao mundo e torna a engolfar
Na estranha ordem geométrica de tudo,
E o absurdo original e seus enigmas,
Suas verdades altas mais que tantos
Monumentos erguidos à verdade;
E a memória dos deuses, e o solene
Sentimento de morte, que floresce
No caule da existência mais gloriosa
Tudo se apresentou nesse relance
E me chamou para seu reino augusto,
Afinal submetido à vista humana.
Mas, como eu relutasse em responder
A tal apelo assim maravilhoso,
Pois a fé se abrandara, e mesmo o anseio,
A esperança mais mínima - esse anelo
De ver desvanecida a treva espessa
Que entre os raios do sol inda se filtra;
Como defuntas crenças convocadas
Presto e fremente não se produzissem
A de novo tingir a neutra face
Que vou pelos caminhos demonstrando
E como se outro ser, não mais aquele
Habitante de mim há tantos anos,
Passasse a comandar minha vontade
Que, já de si volúvel, se cerrava
Semelhante a essas flores reticentes
Em si mesmas abertas e fechadas;
Como se um dom tardio já não fora
Apetecível, antes despiciendo,
Baixei os olhos, incurioso, lasso,
Desdenhando colher a coisa oferta
Que se abria gratuita a meu engenho.
A treva mais estrita já pousara
Sobre a estrada de Minas, pedregosa,
E a máquina do mundo, repelida,
Se foi miudamente recompondo,
Enquanto eu, avaliando o que perdera,
Seguia vagaroso, de mãos pensas.
Camões: de "Luzíadas", Canto X
80
Vês aqui a grande máquina do Mundo,
Etérea e elemental, que fabricada
Assi foi do Saber, alto e profundo,
Que é sem princípio e meta limitada.
Quem cerca em derredor este rotundo
Globo e sua superfície tão limada,
É Deus; mas o que é Deus, ninguém o entende,
Que a tanto o engenho humano não se estende.
Carlos Drummond de Andrade: No meio do caminho
No meio do caminho tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
tinha uma pedra
no meio do caminho tinha uma pedra.
Nunca me esquecerei desse acontecimento
na vida de minhas retinas tão fatigadas.
Nunca me esquecerei que no meio do caminho
tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
no meio do caminho tinha uma pedra
Carlos Drummond de Andrade: Consideração do poema
Não rimarei a palavra sono
com a incorrespondente palavra outono.
Rimarei com a palavra carne
ou qualquer outra, que todas me convêm.
As palavras não nascem amarradas,
elas saltam, se beijam, se dissolvem,
no céu livre por vezes um desenho,
são puras, largas, autênticas, indevassáveis.
Uma pedra no meio do caminho
ou apenas um rastro, não importa.
Estes poetas são meus. De todo o orgulho,
de toda a precisão se incorporam
ao fatal meu lado esquerdo. Furto a Vinicius
sua mais límpida elegia. Bebo em Murilo.
Que Neruda me dê sua gravata
chamejante. Me perco em Apollinaire. Adeus, Maiakovski.
São todos meus irmãos, não são jornais
nem deslizar de lancha entre camélias:
é toda a minha vida que joguei.
Estes poemas são meus. É minha terra
e é ainda mais do que ela. É qualquer homem
ao meio-dia em qualquer praça. É a lanterna
em qualquer estalagem, se ainda as há.
– Há mortos? há mercados? há doenças?
É tudo meu. Ser explosivo, sem fronteiras,
por que falsa mesquinhez me rasgaria?
Que se depositem os beijos na face branca, nas principiantes rugas.
O beijo ainda é um sinal, perdido embora,
da ausência de comércio,
boiando em tempos sujos.
Poeta do finito e da matéria,
cantor sem piedade, sim, sem frágeis lágrimas,
boca tão seca, mas ardor tão casto.
Dar tudo pela presença dos longínquos,
sentir que há ecos, poucos, mas cristal,
não rocha apenas, peixes circulando
sob o navio que leva esta mensagem,
e aves de bico longo conferindo
sua derrota, e dois ou três faróis,
últimos! esperança do mar negro.
Essa viagem é mortal, e começa-la.
Saber que há tudo. E mover-se em meio
a milhões e milhões de formas raras,
secretas, duras. Eis aí meu canto.
Ele é tão baixo que sequer o escuta
ouvido rente ao chão. Mas é tão alto
que as pedras o absorvem. Está na mesa
aberta em livros, cartas e remédios.
Na parede infiltrou-se. O bonde, a rua,
o uniforme de colégio se transformam,
são ondas de carinho te envolvendo.
Como fugir ao mínimo objeto
ou recusar-se ao grande? Os temas passam,
eu sei que passarão, mas tu resistes,
e cresces como fogo, como casa,
como orvalho entre dedos,
na grama, que repousam.
Já agora te sigo a toda parte,
e te desejo e te perco, estou completo,
me destino, me faço tão sublime,
tão natural e cheio de segredos,
tão firme, tão fiel... Tal uma lâmina,
o povo, meu poema, te atravessa.
Carlos Drummond de Andrade: Legado
Que lembrança darei ao país que me deu
tudo que lembro e sei, tudo quanto senti?
Na noite do sem-fim, breve o tempo esqueceu
minha incerta medalha, e a meu nome se ri.
E mereço esperar mais do que os outros, eu?
Tu não me enganas, mundo, e não te engano a ti.
Esses monstros atuais, não os cativa Orfeu,
a vagar, taciturno, entre o talvez e o se.
Não deixarei de mim nenhum canto radioso,
uma voz matinal palpitando na bruma
e que arranque de alguém seu mais secreto espinho.
De tudo quanto foi meu passo caprichoso
na vida, restará, pois o resto se esfuma,
uma pedra que havia em meio do caminho.
Vinícius de Moraes: Pátria minha
A minha pátria é como se não fosse, é íntima
Doçura e vontade de chorar; uma criança dormindo
É minha pátria. Por isso, no exílio
Assistindo dormir meu filho
Choro de saudades de minha pátria.
Se me perguntarem o que é a minha pátria, direi:
Não sei. De fato, não sei
Como, por que e quando a minha pátria;
Mas sei que a minha pátria é a luz, o sal e a água
Que elaboram e liquefazem a minha mágoa
Em longas lágrimas amargas.
Vontade de beijar os olhos de minha pátria
De niná-la, de passar-lhe a mão pelos cabelos...
Vontade de mudar as cores do vestido (auriverde!) tão feias
De minha pátria, de minha pátria sem sapatos
E sem meias pátria minha
Tão pobrinha!
Porque te amo tanto, pátria minha, eu que não tenho
Pátria, eu semente que nasci do vento
Eu que não vou e não venho, eu que permaneço
Em contato com a dor do tempo, eu elemento
De ligação entre a ação e o pensamento
Eu fio invisível no espaço de todo adeus
Eu, o sem Deus!
Tenho-te no entanto em mim como um gemido
De flor; tenho-te como um amor morrido
A quem se jurou; tenho-te como una fé
Sem dogma; tenho-te em tudo em que não me sinto a jeito
Nesta sala estrangeira com lareira
E sem pé-direito.
Ah, pátria minha, lembra-me uma noite no Maine, Nova Inglaterra
Quando tudo passou a ser infinito e nada terra
E eu vi alfa e beta de Centauro escalarem o monte até o céu
Muitos me surpreenderam parado no campo sem luz
À espera de ver surgir a Cruz do Sul
Que eu sabia, mas amanheceu...
Fonte de mel, bicho triste, pátria minha
Amada, idolatrada, salve, salve!
Que mais doce esperança acorrentada
O não poder dizer-te: aguarda...
Não tardo!
Quero rever-te, pátria minha, e para
Rever-te me esqueci de tudo
Fui cego, estropiado, surdo, mudo
Vi minha humilde morte cara a cara
Rasguei poemas, mulheres, horizontes
Fiquei simples, sem fontes.
Pátria minha... A minha pátria não é florão, nem ostenta
Lábaro não; a minha pátria é desolação
De caminhos, a minha pátria é terra sedenta
E praia branca; a minha pátria é o grande rio secular
Que bebe nuvem, come terra
E urina mar.
Mais do que a mais garrida a minha pátria tem
Uma quentura, um querer bem, um bem
Um libertas quae sera tamen
Que um dia traduzi num exame escrito:
"Liberta que serás também"
E repito!
Ponho no vento o ouvido e escuto a brisa
Que brinca em teus cabelos e te alisa
Pátria minha, e perfuma o teu chão...
Que vontade me vem de adormecer-me
Entre teus doces montes, pátria minha
Atento à fome em tuas entranhas
E ao batuque em teu coração.
Não te direi o nome, pátria minha
Teu nome é pátria amada, é patriazinha
Não rima com mãe gentil
Vives em mim como uma filha, que és
Uma ilha de ternura: a Ilha
Brasil, talvez.
Agora chamarei a amiga cotovia
E pedirei que peça ao rouxinol do dia
Que peça ao sabiá
Para levar-te presto este avigrama:
"Pátria minha, saudades de quem te ama...
Vinícius de Moraes."
Vinícius de Moraes: Elegia na morte de Clodoaldo Pereira da Silva Moraes, poeta e cidadão
Elegia na morte de Clodoaldo Pereira da Silva Moraes, poeta e cidadão
A morte chegou pelo interurbano em longas espirais metálicas.
Era de madrugada. Ouvi a voz de minha mãe, viúva.
De repente não tinha pai.
No escuro de minha casa em Los Angeles procurei recompor tua lembrança
Depois de tanta ausência. Fragmentos da infância
Boiaram do mar de minhas lágrimas. Vi-me eu menino
Correndo ao teu encontro. Na ilha noturna
Tinham-se apenas acendido os lampiões a gás, e a clarineta
De Augusto geralmente procrastinava a tarde.
Era belo esperar-te, cidadão. O bondinho
Rangia nos trilhos a muitas praias de distância
Dizíamos: "E-vem meu pai!" Quando a curva
Se acendia de luzes semoventes, ah, corríamos
Corríamos ao teu encontro. A grande coisa era chegar antes
Mas ser marraio em teus braços, sentir por último
Os doces espinhos da tua barba.
Trazias de então uma expressão indizível de fidelidade e paciência
Teu rosto tinha os sulcos fundamentais da doçura
De quem se deixou ser. Teus ombros possantes
Se curvavam como ao peso da enorme poesia
Que não realizaste. O barbante cortava teus dedos
Pesados de mil embrulhos: carne, pão, utensílios
Para o cotidiano (e freqüentemente o binóculo
Que vivias comprando e com que te deixavas horas inteiras
Mirando o mar). Dize-me, meu pai
Que viste tantos anos através do teu óculo-de-alcance
Que nunca revelaste a ninguém?
Vencias o percurso entre a amendoeira e a casa como o atleta exausto no último lance da maratona.
Te grimpávamos. Eras penca de filho. Jamais
Uma palavra dura, um rosnar paterno. Entravas a casa humilde
A um gesto do mar. A noite se fechava
Sobre o grupo familial como uma grande porta espessa.
*
Muitas vezes te vi desejar. Desejavas. Deixavas-te olhando o mar
Com mirada de argonauta. Teus pequenos olhos feios
Buscavam ilhas, outras ilhas... – as imaculadas, inacessíveis
Ilhas do Tesouro. Querias. Querias um dia aportar
E trazer – depositar aos pés da amada as jóias fulgurantes
Do teu amor. Sim, foste descobridor, e entre eles
Dos mais provectos. Muitas vezes te vi, comandante
Comandar, batido de ventos, perdido na fosforescência
De vastos e noturnos oceanos
Sem jamais.
Deste-nos pobreza e amor. A mim me deste
A suprema pobreza: o dom da poesia, e a capacidade de amar
Em silêncio. Foste um pobre. Mendigavas nosso amor
Em silêncio. Foste um no lado esquerdo. Mas
Teu amor inventou. Financiaste uma lancha
Movida a água: foi reta para o fundo. Partiste um dia
Para um brasil além, garimpeiro, sem medo e sem mácula.
Doze luas voltaste. Tua primogênita – diz-se –
Não te reconheceu. Trazias grandes barbas e pequenas águas-marinhas.
Não eram, meu pai. A mim me deste
Águas-marinhas grandes, povoadas de estrelas, ouriços
E guaiamus gigantes. A mim me deste águas-marinhas
Onde cada concha carregava uma pérola. As águas-marinhas que me deste
Foram meu primeiro leito nupcial.
*
Eras, meu pai morto
Um grande Clodoaldo
Capaz de sonhar
Melhor e mais alto
Precursor do binômio
Que reverteria
Ao nome original
Semente do sêmen
Revolucionário
Gentil-homem insigne
Poeta e funcionário
Sempre preterido
Nunca titular
Neto de Alexandre
Filho de Maria
Cônjuge de Lydia
Pai da Poesia.
*
Diante de ti homem não sou, não quero ser. És pai do menino que eu fui.
Entre minha barba viva e a tua morta, todavia crescendo
Há um toque irrealizado. No entanto, meu pai
Quantas vezes ao ver-te dormir na cadeira de balanço de muitas salas
De muitas casas de muitas ruas
Não te beijei em meu pensamento! Já então teu sono
Prenunciava o morto que és, e minha angústia
Buscava ressuscitar-te. Ressuscitavas. Teu olhar
Vinha de longe, das cavernas imensas do teu amor, aflito
Como a querer defender. Vias-me e sossegavas.
Pouco nos dizíamos: "Como vai?". Como vais, meu pobre pai
No teu túmulo? Dormes, ou te deixas
A contemplar acima – eu bem me lembro! – perdido
Na decifração de como ser?
Ah, dor! Como quisera
Ser de novo criança em teus braços e ficar admirando tuas mãos!
Como quisera escutar-te de novo cantar criando em mim
A atonia do passado! Quantas baladas, meu pai
E que lindas! Quem te ensinou as doces cantigas
Com que embalavas meu dormir? Voga sempre o leve batel
A resvalar macio pelas correntezas do rio da paixão?
Prosseguem as donzelas em êxtase na noite à espera da barquinha
Que busca o seu adeus? E continua a rosa a dizer à brisa
Que já não mais precisa os beijos seus?
Calaste-te, meu pai. No teu ergástulo
A voz não é – a voz com que me apresentavas aos teus amigos:
"Esse é meu filho FULANO DE TAL". E na maneira
De dizê-lo – o vôo, o beijo, a bênção, a barba
Dura rocejando a pele, ai!
*
Tua morte, como todas, foi simples.
É coisa simples a morte. Dói, depois sossega. Quando sossegou –
Lembro-me que a manhã raiava em minha casa – já te havia eu
Recuperado totalmente: tal como te encontras agora, vestido de mim.
Não és, como não serás nunca para mim
Um cadáver sob um lençol.
És para mim aquele de quem muitos diziam: "É um poeta…"
Poeta foste, e és, meu pai. A mim me deste
O primeiro verso à namorada. Furtei-o
De entre teus papéis: quem sabe onde andará… Fui também
Verso teu: lembro ainda hoje o soneto que escreveste celebrando-me
No ventre materno. E depois, muitas vezes
Vi-te na rua, sem que me notasses, transeunte
Com um ar sempre mais ansioso do que a vida. Levava-te a ambição
De descobrir algo precioso que nos dar.
Por tudo o que não nos deste
Obrigado, meu pai.
Não te direi adeus, de vez que acordaste em mim
Com uma exatidão nunca sonhada. Em mim geraste
O Tempo: aí tens meu filho, e a certeza
De que, ainda obscura, a minha morte dá-lhe vida
Em prosseguimento à tua; aí tens meu filho
E a certeza de que lutarei por ele. Quando o viste a última vez
Era um menininho de três anos. Hoje cresceu
Em membros, palavras e dentes. Diz de ti, bilíngüe:
"Vovô was always teasing me…"
É meu filho, teu neto. Deste-lhe, em tua digna humildade
Um caminho: o meu caminho. Marcha ela na vanguarda do futuro
Para um mundo em paz: o teu mundo – o único em que soubeste viver;
aquele que, entre lágrimas, cantos e martírios, realizaste à tua volta.
Murilo Mendes: Anti-elegia nº 2
Olho para tudo
Com o olhar ambíguo
De quem vai se despedir do mundo
Eis a última curva o último filme
Eis o último gole d’água a última mulher
Eis o último fox-blue
Já estou sentindo
As violetas crescerem sobre mim.
Pablo Neruda: Soneto LXV
Matilde, dónde estás? Noté, hacia abajo,
entre corbata y corazón, arriba,
cierta melancolía intercostal:
era que tú de pronto eras ausente.
Me hizo falta la luz de tu energía
y miré devorando la esperanza,
miré el vacío que es sin ti una casa,
no quedan sino trágicas ventanas.
De puro taciturno el techo escucha
caer antiguas lluvias deshojadas,
plumas, lo que la noche aprisionó:
y así te espero como casa sola
y volverás a verme y habitarme.
De otro modo me duelen las ventanas.
Guillaume Apollinaire: Et toi mon coeur
Et toi mon coeur pourquoi bats-tu
Comme un guetteur mélancolique
j'observe la nuit et la mort
Tradução de Antonio Cicero:
E tu meu coração
E tu meu coração por que bates
Feito um atalaia melancólico
observo a noite e a morte
Apollinaire : La Jolie rousse
Me voici devant tous un homme plein de sens
Connaissant la vie et de la mort ce qu'un vivant peut connaître
Ayant éprouvé les douleurs et les joies de l'amour
Ayant su quelquefois imposer ses idées
Connaissant plusieurs langages
Ayant pas mal voyagé
Ayant vu la guerre dans l'Artillerie et l'Infanterie
Blessé à la tête trépané sous le chloroforme
Ayant perdu ses meilleurs amis dans l'effroyable lutte
Je sais d'ancien et de nouveau autant qu'un homme seul
Pourrait des deux savoir
Et sans m'inquiéter aujourd'hui de cette guerre
Entre nous et pour nous mes amis
Je juge cette longue querelle de la tradition et de l'invention
De l'Ordre de l'Aventure
Vous dont la bouche est faite à l'image de celle de Dieu
Bouche qui est l'ordre même
Soyez indulgents quand vous nous comparez
A ceux qui furent la perfection de l'ordre
Nous qui quêtons partout l'aventure
Nous ne sommes pas vos ennemis
Nous voulons nous donner de vastes et d'étranges domaines
Où le mystère en fleurs s’offre à qui veut le cueillir
Il y a là des feux nouveaux des couleurs jamais vues
Mille phantasmes impondérables
Auxquels il faut donner de la réalité
Nous voulons explorer la bonté contrée énorme où tout se tait
Il y a aussi le temps qu'on peut chasser ou faire revenir
Pitié pour nous qui combattons toujours aux frontières
De l'ilimité et de l'avenir
Pitié pour nos erreurs pitié pour nos péchés
Voici que vient l'été la saison violente
Et ma jeunesse est morte ainsi que le printemps
O Soleil c'est le temps de la raison ardente
Et j'attends
Pour la suivre toujours la forme noble et douce
Qu'elle prend afin que je l'aime seulement
Elle vient et m'attire ainsi qu'un fer l'aimant
Elle a l'aspect charmant
D'une adorable rousse
Ses cheveux sont d'or on dirait
Un bel éclair qui durerait
Ou ces flammes qui se pavanent
Dans les roses-thé qui se fanent
Mais riez de moi
Hommes de partout surtout gens d'ici
Car il y a tant de choses que je n'ose vous dire
Tant de choses que vous ne me laisseriez pas dire
Ayez pitié de moi
A linda ruiva
Eis-me diante de todos um homem cheio de senso
Conhecendo da vida e da morte o que um vivo pode conhecer
Tendo provado as dores e as alegrias do amor
Tendo sido capaz vez por outra de impor suas idéias
Sabendo várias línguas
Tendo viajado não pouco
Tendo visto a guerra na Artilharia e na Infantaria
Ferido na cabeça trepanado com clorofórmio
Tendo perdido seus melhores amigos na luta pavorosa
Conheço do antigo e do novo tanto quanto um só homem poderia saber de ambos
E sem hoje preocupar-me com essa guerra
Entre nós e para nós meus amigos
Julgo essa longa querela da tradição e da invenção
Da Ordem e da Aventura
Vós, cuja boca é feita à imagem da de Deus
Boca que é a própria ordem
Sede indulgentes quando nos comparades
Com aqueles que foram a perfeição da ordem
Nós que em toda a parte buscamos a aventura
Não somos vossos inimigos
Queremos dar-vos vastos e estranhos domínios
Onde o mistério em flores se oferece a quem o quiser colher
Lá existem fogos novos de cores jamais vistas
Mil fantasmas impoderáveis
Aos quais é preciso dar realidade
Queremos explorar a bondade país enorme onde tudo se cala
Há também o tempo que se pode expulsar ou mandar retornar
Piedade de nós que combatemos sempre nas fronteiras
Do ilimitado e do futuro
Piedade de nossos erros piedade de nossos pecados
Eis que retorna o verão a estação violenta
E minha juventude morreu como a primavera
Oh Sol chegou o tempo da Razão ardente
E espero
Para segui-la sempre a forma nobre e suave
Que ela assume para que eu a ame unicamente
Ela vem e me atrai como um ferro o íman
Ela tem o aspecto adorável
De uma adorável ruiva
Seus cabelos são de ouro dir-se-iam
Um belo relâmpago que durasse
Ou essas chamas que pavoneiam
Nas rosas-chá que murcham
Mas ride ride de mim
Homens de toda parte sobretudo gente daqui
Pois há tantas coisas que não ouso contar-vos
tantas coisas que não me deixaríeis dizer
tende piedade de mim.
Baudelaire: L’Ennemi
Ma jeunesse ne fut qu'un ténébreux orage,
Traversé çà et là par de brillants soleils;
Le tonnerre et la pluie ont fait un tel ravage,
Qu'il reste en mon jardin bien peu de fruits vermeils.
Traversé çà et là par de brillants soleils;
Le tonnerre et la pluie ont fait un tel ravage,
Qu'il reste en mon jardin bien peu de fruits vermeils.
Voilà que j'ai touché l'automne des idées,
Et qu'il faut employer la pelle et les râteaux
Pour rassembler à neuf les terres inondées,
Où l'eau creuse des trous grands comme des tombeaux.
Et qu'il faut employer la pelle et les râteaux
Pour rassembler à neuf les terres inondées,
Où l'eau creuse des trous grands comme des tombeaux.
Et qui sait si les fleurs nouvelles que je rêve
Trouveront dans ce sol lavé comme une grève
Le mystique aliment qui ferait leur vigueur?
Trouveront dans ce sol lavé comme une grève
Le mystique aliment qui ferait leur vigueur?
- O douleur! ô douleur! Le Temps mange la vie,
Et l'obscur Ennemi qui nous ronge le coeur
Du sang que nous perdons croît et se fortifie!
Et l'obscur Ennemi qui nous ronge le coeur
Du sang que nous perdons croît et se fortifie!
Tradução de Ivan Junqueira: O inimigo
A juventude não foi mais que um temporal,
Aqui e ali por sóis ardentes trespassado;
As chuvas e os trovões causaram dano tal
Que em meu pomar não resta um fruto sazonado.
Eis que alcancei o outono de meu pensamento,
E agora o ancinho e a pá se fazem necessários
Para outra vez compor o solo lamacento,
Onde profundas covas se abrem como ossários.
E quem sabe se as flores que meu sonho ensaia
Não achem nessa gleba aguada como praia
O místico alimento que as fará radiosas?
Ó dor! O Tempo faz da vida uma carniça,
E o sombrio Inimigo que nos rói as rosas
No sangue que perdemos se enraíza e viça!
Aqui e ali por sóis ardentes trespassado;
As chuvas e os trovões causaram dano tal
Que em meu pomar não resta um fruto sazonado.
Eis que alcancei o outono de meu pensamento,
E agora o ancinho e a pá se fazem necessários
Para outra vez compor o solo lamacento,
Onde profundas covas se abrem como ossários.
E quem sabe se as flores que meu sonho ensaia
Não achem nessa gleba aguada como praia
O místico alimento que as fará radiosas?
Ó dor! O Tempo faz da vida uma carniça,
E o sombrio Inimigo que nos rói as rosas
No sangue que perdemos se enraíza e viça!
Vladímir Maiakovski: A extraordinária aventura vivida por Vladímir Maiakóvski no verão na Datcha. Tradução de Augusto de Campos:
(Púchino, monte Akula, datcha de Rumiántzev, a 27 verstas pela estrada de ferro de Iaroslávl)
A tarde ardia com cem sóis.
O verão rolava em julho.
O calor se enrolava
no ar e nos lençóis
da datcha onde eu estava.
Na colina de Púchkino, corcunda,
o monte Akula,
e ao pé do monte
a aldeia enruga
a casca dos telhados.
E atrás da aldeia,
um buraco
e no buraco, todo dia,
o mesmo ato:
o sol descia
lento e exato.
E de manhã
outra vez
por toda parte
lá estava o sol
escarlate.
Dia após dia
isto
começou a irritar-me
terrivelmente.
Um dia me enfureço a tal ponto
que, de pavor, tudo empalidece.
E grito ao sol, de pronto:
"Desce!
Chega de vadiar nessa fornalha!"
E grito ao sol:
"Parasita!
Você, aí, a flanar pelos ares,
e eu, aqui, cheio de tinta,
com a cara nos cartazes!"
E grito ao sol:
"Espere!
Ouça, topete de ouro,
e se em lugar
desse ocaso
de paxá
você baixar em casa
para um chá?"
Que mosca me mordeu!
É o meu fim!
Para mim
sem perder tempo
o sol
alargando os raios-passos
avança pelo campo.
Não quero mostrar medo.
Recuo para o quarto.
Seus olhos brilham no jardim.
Avançam mais.
Pelas janelas,
pelas portas,
pelas frestas,
a massa
solar vem abaixo
e invade a minha casa.
Recobrando o fôlego,
me diz o sol com voz de baixo:
"Pela primeira vez recolho o fogo,
desde que o mundo foi criado.
Você me chamou?
Apanhe o chá,
pegue a compota, poeta!"
Lágrimas nas pontas dos olhos
-e o calor me fazia desvairar-
eu lhe mostro o samovar:
"Pois bem,
sente-se astro!"
Quem mandou berrar ao sol
insolências sem conta?
Contrafeito
me sento numa ponta
do banco e espero a conta
com um frio no peito.
Mas uma estranha claridade
fluía sobre o quarto
e esquecendo os cuidados
começo
pouco a pouco
a palestrar com o astro.
Falo disso e daquilo,
como me cansa a Rosta,
etc.
Eo sol:
"Está certo,
mas não se desgoste,
não pinte coisas tão pretas.
E eu? Você pensa
que brilhar
é fácil?
Prove, pra ver!
Mas quando se começa
é preciso prosseguir
e a gente vai e brilha pra valer!"
Conversamos até a noite
ou até o que ,antes ,eram trevas.
Como falar, ali, de sombras?
Ficamos íntimos,
os dois.
Logo,
com desassombro,
estou batendo no seu ombro.
E o sol por fim:
"Somos amigos
pra sempre, eu de você,
você de mim.
Vamos poeta,
cantar,
luzir
no lixo cinza do universo.
Eu verterei o meu sol
e você o seu
com seus versos."
O muro das sombras,
prisão das trevas,
desaba sob o obus
dos nossos sóis de duas bocas.
Confusão de poesia e luz,
chamas por toda parte.
Se o sol se cansa
e a noite lenta
quer ir pra cama,
marmota sonolenta,
eu, de repente,
inflamo minha flama
e o dia fulge novamente.
Brilhar pra sempre,
brilhar como um farol,
brilhar com brilho eterno,
gente é pra brilhar,
que tudo o mais vá pro inferno,
este é o meu slogan
e o do sol.
tesoureado
ResponderExcluirqueria me embriagar
me encontrar de ti perdido
me esperdiçar, te trair e voltar
fazer disto meu purgar requerido
escravo do teu suspenso perdão
sorridentar teu chute à minha cara
de bom grado ter seu carinho de navalha
agradecer cada ofensa e muito mais pedir: fala
louco de querer querer
querer querido e não forjado
a estas linhas - oculto o fado -
sou retalho
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ResponderExcluirtantos dias de vida-reza
ResponderExcluir(à minha avó)
esses olhos verdes mergulhados
em lacrimejos não descidos
brilho espesso, esmeralda cozida
coseu sua vida com as
linhas contas dos terços
dos peços e agradeços
dos tem misericórdias
e dos eu mereços
com sua fé
garante meu bem:
pedindo a Ele
que me abençoe
guarde e proteja
e eu, de amor,
amém
sobre um dia que dura 23:59:59(...)h
ResponderExcluirme dá meu segundo,
carinho sequer nesse mundo,
não deixe o meu dia suspenso
- de castigo na gangorra -
um vazio profundo
me transborda moribundo
e desse oco abano um lenço
- em paz me socorra -
nao te contei da receita
que hoje experimentei
nem do café tão quente
que a língua queimei
achei um molde de bravura-de-amor
amassado, empoeirado, esquecido
nada que não possa ser consertado
se aproveitado esse tempo de calor
pra amaciá-lo e remodelá-lo
à forma tua, meu amor.
Alguns poemas de versos livres:
ResponderExcluirAmorrece
amole o coração cego
de amor duro tal prego
Que racha dura perda
pobre coração mole
amor tonto de porre
mola que logo engole
pontas cegas de pedra.
***
Musas
Invejo a extensão dos poemas de mil versos
a intensa noite de núpcias com as musas
num reino onde o sol se põe apenas uma vez.
Muito raro só me trazem alguns beijos
tímidos e avaros, quase não têm gosto
ou rebentam em sonoras bofetadas.
***
Declaração
Beijos frios
racham lábios
que se rompem
e sangram
ao jurar amor.
***
Sillyvisionache
Os fios tensos dos postes
Suportam o peso dos prédios
Mantendo a civilização de pé.
Seria mais divertido
Se fossem frágeis amarras
Que ao serem cortadas
Fariam flutuar a cidade
Cheia e leve como um balão.
***
Súplica
Antes testa do que nuca
alvo de teus desaforos
fora a goela cheia de choro
torrente que teima em sair
quente
as orelhas torradas de orgulho
prefiro de frente enfrentar teu ódio
assim peço
senão tropeço
e temo não levantar nunca.
Marcelo Duarte
SONETO EM VERDE
ResponderExcluirO verde foi chegando, novo em folha.
Foi se abrindo... Virou emaranhado,
estranho vegetal entrelaçado.
Seu Inferno Verde é questão de escolha.
Vegetalmente nu, é todo pasto.
Até dizem que muros violenta.
Garçom, faça o favor, um chá de menta.
Pecados perdoados. Verde é casto.
De musgo cubro todas as paredes,
colho as uvas que sempre estarão verdes.
Faço vinhos. Doleiros beberão.
Ao Hulk, esperançosa brindarei
e, sem príncipe, sapos beijarei
em vão. Rogai por nós, verde limão!
SONETO EM BEGE
Chega o bege com jeito brecholento.
Destacar-se não é seu grande intento.
É possível dar mais, um pouco mais?
Para o bege, seria pedir demais.
Pouco a pouco, essa cor clara escurece
e doses de conhaque se oferece.
Acorda bege, aposta no seu tom!
Sem reservas: um conhaque garçom.
Mas bege, o que será que está faltando?
Clean demais, falta certa empolgação.
Sempre se arrasta, sempre limpa o chão.
Mas bege, o que será que está sobrando?
Bebeu demais, quase virou marrom.
Meu Deus, que tom! Um conhaque garçom!
SONETO EM PRETO
Chegou o preto e nos mostra a que veio.
Fichas nele coloco, sem receio.
Black is beautiful, também do razão.
Que tal botar mais água no feijão?
Sadô - Masô, a cor Dominatrix.
Viúva negra, Fuscão preto, Onyx.
Ouro negro à cobiça nos induz.
Escuridão: outra espécie de luz!
Há morcegos nas trevas da caverna,
negra flor tatuada sobre a perna.
Só uns darks, pessimistas, fazem drama.
Fica incorreto politicamente
se não o chamam afro-descendente.
Sendo assim, vai por mim: vote em Obama.