terça-feira, 16 de agosto de 2011

Aula de 22 de agosto




Charles Baudelaire: L'albatros

Souvent, pour s'amuser, les hommes d'équipage
Prennent des albatros, vastes oiseaux des mers,
Qui suivent, indolents compagnons de voyage,
Le navire glissant sur les gouffres amers.

A peine les ont-ils déposés sur les planches,
Que ces rois de l'azur, maladroits et honteux,
Laissent piteusement leurs grandes ailes blanches
Comme des avirons traîner à côté d'eux.

Ce voyageur ailé, comme il est gauche et veule!
Lui, naguère si beau, qu'il est comique et laid!
L'un agace son bec avec un brûle-gueule,
L'autre mime, en boitant, l'infirme qui volait!

Le Poète est semblable au prince des nuées
Qui hante la tempête et se rit de l'archer;
Exilé sur le sol au milieu des huées,
Ses ailes de géant l'empêchent de marcher


Tradução de Guilherme de Almeida:

O albatroz

Às vezes, por prazer, os homens de equipagem
Pegam um albatroz, enorme ave marinha,
Que segue, companheiro indolente de viagem,
O navio que sobre os abismos caminha.

Mal o põem no convés por sobre as pranchas rasas,
Esse senhor do azul, sem jeito e envergonhado,
Deixa doridamente as grandes e alvas asas
Como remos cair e arrastar-se a seu lado.

Que sem graça é o viajor alado sem seu nimbo!
Ave tão bela, como está cômica e feia!
Um o irrita chegando ao seu bico em cachimbo,
Outro põe-se a imitar o enfermo que coxeia!

O poeta é semelhante ao príncipe da altura
Que busca a tempestade e ri da flecha no ar;
Exilado no chão, em meio à corja impura,
A asa de gigante impedem-no de andar.


Alex Varella:

Prazeres do visível

Ver até o limite da visibilidade estonteante do visível
ver até o inesgotável do ver e do ser
ver e não crer
ver e ver até mais
e mais e mais e mais
até não poder mais ser
e desfalecer
(o corpo é a alma do corpo)
no poente do prazer


Alex Varella:

Nosso mito

O mundo estava às escuras.
Tudo era regido então pelo breu da Grande Indistinção.
O dia em que acendeu a luz da Poesia,
tudo ficou tão claro,
ainda mais indistinto.
Passou a ser regido então
pela luz da Grande Indistinção.
Poesia é a arte de alcançar de novo a indistinção.
De alcançar a indistinção pela luz,
não pelo breu








Antonio Cicero:
Francisca

Francisca veio do lá do Piaui
quando era ainda quase uma criança
e já chegou sonhando em retornar
e cultivar em meio a certas brenhas
algum roçado junto à sua mãe,
pois lá ficara o mundo de verdade:
o sol a chuva a noite a festa a morte.

Um certo norte está onde ela está,
em frente à praia de Copacabana,
onde ela faz cuscuz, beiju ou peta,
e seu sotaque não sei se é mais forte
quando ela ralha com o feirante esperto
ou quando prosa com a mãe ausente
ou o sabiá pousado em sua mão.

Entre o Nordeste que deixou na infância
e o Sul que nunca pareceu real
Francisca tem saudade de uns lugares
que passam a existir quando ela os pinta:
são mares turquesinos e espumantes
em frente a uns casarões abandonados
que, não sei bem por que, nos desamparam.


Castro Alves:

Os três amores
I
Minh'alma é como a fronte sonhadora
Do louco bardo, que Ferrara chora...
Sou Tasso!... a primavera de teus risos
De minha vida as solidões enflora...
Longe de ti eu bebo os teus perfumes,
Sigo na terra de teu passo os lumes...
- Tu és Eleonora...

II
Meu coração desmaia pensativo,
Cismando em tua rosa predileta.
Sou teu pálido amante vaporoso,
Sou teu Romeu... teu lânguido poeta!...
Sonho-te às vezes virgem... seminua...
Roubo-te um casto beijo à luz da lua...
- E tu és Julieta...

III
Na volúpia das noites andaluzas
O sangue ardente em minhas veias rola...
Sou D. Juan!... Donzelas amorosas,
Vós conheceis-me os trenos na viola!
Sobre o leito do amor teu seio brilha...
Eu morro, se desfaço-te a mantilha...
Tu és - Júlia, a Espanhola!...
Recife, setembro de 1866


Fernando Pessoa:

Paira à tona de água

Paira à tona de água
Uma vibração,
Há uma vaga mágoa
No meu coração.
Não é porque a brisa
Ou o que quer que seja
Faça esta indecisa
Vibração que adeja,
Nem é porque eu sinta
Uma dor qualquer.
Minha alma é indistinta
Não sabe o que quer.
É uma dor serena,
Sofre porque vê.
Tenho tanta pena!
Soubesse eu de quê!...

Cecília Meirelles:

Desejo de regresso

Deixai-me nascer de novo,
nunca mais em terra estranha,
mas no meio do meu povo,
com meu céu, minha montanha,
meu mar e minha família.

E que na minha memória
fique esta vida bem viva,
para contar minha história
de mendiga e de cativa
e meus suspiros de exílio.


Castro Alves:

Crepúsculo sertanejo

A tarde morria! Nas águas barrentas
As sombras das margens deitavam-se longas;
Na esguia atalaia das árvores secas
Ouvia-se um triste chorar de arapongas.
A tarde morria! Dos ramos, das lascas,
Das pedras, do líquen, das heras, dos cardos,
As trevas rasteiras com o ventre por terra
Saíam, quais negros, cruéis leopardos.
A tarde morria! Mas funda nas águas
Lavava-se a galha do escuro ingazeiro...
Ao fresco arrepio dos ventos cortantes
Em músico estalo rangia o coqueiro.
Sussurro profundo! Marulho gigante!
Talvez um — silêncio!... Talvez uma — orquestra...
Da folha, do cálix, das asas, do inseto...
Do átomo — à estrela... do verme — à floresta!...
As garças metiam o bico vermelho
Por baixo das asas, — da brisa ao açoite—;
E a terra na vaga de azul do infinito
Cobria a cabeça co'as penas da noite!
Somente por vezes, dos jungles das bordas
Dos golfos enormes, daquela paragem,
Erguia a cabeça surpreso, inquieto,
Coberto de limos — um touro selvagem.
Então as marrecas, em torno boiando,
O vôo encurvavam medrosas, à toa...
E o tímido bando pedindo outras praias
Passava gritando por sobre a canoa!...




Gonçalves Dias:

I-Juca Pirama VIII

"Tu choraste em presença da morte?
Na presença de estranhos choraste?
Não descende o cobarde do forte;
Pois choraste, meu filho não és!
Possas tu, descendente maldito
De uma tribo de nobres guerreiros,
Implorando cruéis forasteiros,
Seres presa de vis Aimorés.

"Possas tu, isolado na terra,
Sem arrimo e sem pátria vagando,
Rejeitado da morte na guerra,
Rejeitado dos homens na paz,
Ser das gentes o espectro execrado;
Não encontres amor nas mulheres,
Teus amigos, se amigos tiveres,
Tenham alma inconstante e falaz!

"Não encontres doçura no dia,
Nem as cores da aurora te ameiguem,
E entre as larvas da noite sombria
Nunca possas descanso gozar:
Não encontres um tronco, uma pedra,
Posta ao sol, posta às chuvas e aos ventos,
Padecendo os maiores tormentos,
Onde possas a fronte pousar.

"Que a teus passos a relva se torre;
Murchem prados, a flor desfaleça,
E o regato que límpido corre,
Mais te acenda o vesano furor;
Suas águas depressa se tornem,
Ao contacto dos lábios sedentos,
Lago impuro de vermes nojentos,
Donde fujas com asco e terror!


"Sempre o céu, como um teto incendido,
Creste e punja teus membros malditos
E oceano de pó denegrido
Seja a terra ao ignavo tupi!
Miserável, faminto, sedento,
Manitôs lhe não falem nos sonhos,
E do horror os espectros medonhos
Traga sempre o cobarde após si.

"Um amigo não tenhas piedoso Que o teu corpo na terra embalsame,
Pondo em vaso d’argila cuidoso
Arco e frecha e tacape a teus pés!
Sê maldito, e sozinho na terra;
Pois que a tanta vileza chegaste,
Que em presença da morte choraste,
Tu, cobarde, meu filho não és."


Cassiano Ricardo:

Serenata sintética

Lua
morta.
Rua
torta.
Tua
porta.


Mário de Andrade:

quebra
queima
reina
dança
sangue
gosma


Casimiro de Abreu:

A Valsa

Tu, ontem,
Na dança
Que cansa,
Voavas
Co'as faces
Em rosas
Formosas
De vivo,
Lascivo
Carmim;
Na valsa
Tão falsa,
Corrias,
Fugias,
Ardente,
Contente,
Tranqüila,
Serena,
Sem pena
De mim!


Gonçalves Dias:

A certa autoridade [trecho]

Realmente,
Coronel,
Tens uma alma
Bem cruel.
[...]


Paulo Mendes Campos:

Um homem pobre

A ferro e fogo
se faz um homem
quando ele é pobre.
A fome e logro,
plaina e formão,
faz-se um irmão,
um irmão pobre.


Gonçalves Dias:

Canção do Tamoio

Não chores, meu filho;
Não chores, que a vida
É luta renhida:
Viver é lutar.
A vida é combate,
Que os fracos abate,
Que os fortes, os bravos
Só pode exaltar.

Carlos Drummond de Andrade:

Memória

Amar o perdido
deixa confundido
este coração.
Nada pode o olvido
contra o sem sentido
apelo do não.
As coisas tangíveis
tornam-se insensíveis
à palma da mão.
Mas as coisas findas,
muito mais que lindas,
essas ficarão.


Antonio Cicero:

Noite

Vêm lá do canal
reverberações
do ladrar de um cão.

Uma dessas noites
tudo vai embora:
Leve-nos,
ladrão.

Abre-se o sinal
sem ninguém passar.
É melhor ser vão
tudo o que pontua
nossa escuridão.



Carlos Drummond de Andrade:

A um varão que acaba de nascer

Chegas, e um mundo vai-se
como animal ferido,
arqueja. Nem aponta
uma forma sensível,
pois já sabemos todos
que custa a modelar-se
uma raiz, um broto.
E contudo vens tarde.
Todos vêm tarde. A terra
anda morrendo sempre,
e a vida, se persiste,
passa descompassada,
e nosso andar é lento,
curto nosso respiro,
e logo repousamos
e renascemos logo.
(Renascemos? talvez.)
Crepita uma fogueira
que não aquece. Longe.
Todos vêm cedo, todos
chegam fora de tempo,
antes, depois. Durante,
quais os que aportam? Quem
respirou o momento,
vislumbrando a paisagem
de coração presente?
Quem amou e viveu?
Quem sofreu de verdade?
Como saber que foi
nossa aventura, e não
outra, que nos legaram?
No escuro prosseguimos.
Num vale de onde a luz
se exilou, e no entanto
basta cerrar os olhos
para que nele trema,
remoto e matinal,
o crepúsculo. Sombra!
Sombra e riso, que importa?
Estendem os mais sábios
a mão, e no ar ignoto
o roteiro decifram,
e é às vezes um eco,
outras, a caça esquiva,
que desafia, e salva-se.
E a corrente, atravessa-a,
mais que o veleiro impróprio,
certa cumplicidade
entre nosso corpo e água.
Os metais, as madeiras
já se deixam malear,
de pena, dóceis. Nada
é rude tão bastante
que nunca se apiede
e se furte a viver
em nossa companhia.
Este é de resto o mal
superior a todos:
a todos como a tudo
estamos presos. E
se tentas arrancar
o espinho de teu flanco,
a dor em ti rebate
a do espinho arrancado.
Nosso amor se mutila
a cada instante. A cada
instante agonizamos
ou agoniza alguém
sob o carinho nosso.
Ah, libertar-se, lá
onde as almas se espelhem
na mesma frigidez
de seu retrato, plenas!
É sonho, sonho. Ilhados,
pendentes, circunstantes,
na fome e na procura
de um eu imaginário
e que, sendo outro, aplaque
todo este ser em-ser,
adoramos aquilo
que é nossa perda. E morte
e evasão e vigília
e negação do ser
com dissolver-se em outro
transmutam-se em moeda
e resgate do eterno.
Para amar sem motivo
e motivar o amor
na sua desrazão,
Pedro, vieste ao mundo.
Chamo-te meu irmão.



Antonio Cicero:

História

A história, que vem a ser?
mera lembrança esgarçada
algo entre ser e não-ser:
noite névoa nuvem nada.
Entre as palavras que a gravam
e os desacertos dos homens
tudo o que há no mundo some:
Babilônia Tebas Acra.
Que o mais impecável verso
breve afunda feito o resto
(embora mais lentamente
que o bronze, porque mais leve)
sabe o poeta e não o ignora
ao querê-lo eterno agora.


Antonio Cicero:

Logrador

Você habita o próprio centro
de um coração que já foi meu.
Por dentro torço pra que dentro
em pouco lá só more eu.
Livre de todos os negócios
e vícios que provêm de amar
lá seja o centro de alguns ócios
que escolherei por cultivar.
E pra que os sócios vis do amor,
rancor, dor, ódio, solidão,
não mais consumam meu vigor,
amado e amor banir-se-ão
do centro rumo a um logrador
subúrbio desse coração.


Vinícius de Moraes:

Soneto da maioridade

O Sol, que pelas ruas da cidade
Revela as marcas do viver humano
Sobre teu belo rosto soberano
Espalha apenas pura claridade.
Nasceste para o Sol; és mocidade
Em plena floração, fruto sem dano
Rosa que enfloresceu, ano por ano
Para uma esplêndida maioridade.
Ao Sol, que é pai do tempo, e nunca mente
Hoje se eleva a minha prece ardente:
Não permita ele nunca que se afoite
A vida em ti, que é sumo de alegria
De maneira que tarde muito a noite
Sobre a manhã radiosa do teu dia.





Antonio Cicero:

Eco

A pele salgada daquele surfista
parece doce de leite condensado.
Como seu olhar, o mar é narcisista
e, na vista de um, o outro é espelhado
e embora, quando ele dança sobre as cristas,
goste de atrair olhares extraviados
de banhistas distraídos ou artistas,
é claro que o mar é seu único amado.
Ei-lo molhado em pé na areia: folgado,
ao pôr-do-sol tem de um lado a prancha em riste
e usa do outro uma gata e um brinco e assiste
serenamente ao horizonte inflamado
e a brisa o alisa e enfim ele não resiste
à beleza e diz sinistro! e ouve eco ao lado.


Carlos Drummond de Andrade:

Legado

Que lembrança darei ao país que me deu
tudo que lembro e sei, tudo quanto senti?
Na noite do sem-fim, breve o tempo esqueceu
minha incerta medalha, e a meu nome se ri.
E mereço esperar mais do que os outros, eu?
Tu não me enganas, mundo, e não te engano a ti.
Esses monstros atuais, não os cativa Orfeu,
a vagar, taciturno, entre o talvez e o se.
Não deixarei de mim nenhum canto radioso,
uma voz matinal palpitando na bruma
e que arranque de alguém seu mais secreto espinho.
De tudo quanto foi meu passo caprichoso
na vida, restará, pois o resto se esfuma,
uma pedra que havia em meio do caminho.





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