sábado, 2 de julho de 2011

Aula de 5 de julho

POEMAS DE ANTONIO CICERO:

Dita

Qualquer poema bom provém do amor
Narcíseo: e agora mesmo, aqui, falando,
esculpo um poema, pondo à orelha a flor
da pele da palavras, justo quando
assino os heterônimos famosos:
Safo, Caetano, Píndaro ou Fernando.
Falo por todos. Somos fabulosos
Quando a nós mesmos nós nos desejamos.
Beijando o espelho d’água da linguagem,
jamais tivemos mesmo outra mensagem,
jamais adivinhando se a arte imita
a vida ou se a incita ou se é bobagem.
Desejarmo-nos: eis nossa desdita,
pedindo-nos demais para ser dita.


Dilema

O que muito me confunde
é que no fundo de mim estou eu
e no fundo de mim estou eu.
No fundo
sei que não sou sem fim
e sou feito de um mundo imenso
imerso num universo
que não é feito de mim.
Mas mesmo isso é controverso
se nos versos de um poema
perverso sai o reverso.
Disperso num tal dilema
o certo é reconhecer:
no fundo de mim
sou sem fundo.


Oráculo

Vai e diz ao rei:
Cai a casa magnífica,
O santuário de Apolo;
Fenece o louro sagrado;
A voz da vidente emudece;
As fontes murmurantes se calam para sempre.
Diz adeus adeus.
Tudo erra, tanto
A terra vagabunda quanto
Tu, planetário.
Criança e rei,
Delira e ri:
Meu sepulcro não será tua masmorra.
Alimenta teu espírito também com meu cadáver,
Pisa sobre estas esplêndidas ruínas e,
Se não há caminhos,
Voa.
Voa ri delira
Nessa viagem sem retorno ou fim.




História

A história, que vem a ser?
mera lembrança esgarçada
algo entre ser e não-ser:
noite névoa nuvem nada.
Entre as palavras que a gravam
e os desacertos dos homens
tudo o que há no mundo some:
Babilônia Tebas Acra.
Que o mais impecável verso
breve afunda feito o resto
(embora mais lentamente
que o bronze, porque mais leve)
sabe o poeta e não o ignora
ao querê-lo eterno agora.


Minos

Não ocultei o monstro: Jamais hei de ocultá-lo.
Jamais erguerei paredes para vedá-lo às vistas dos curiosos e maledicentes. Jamais hei de exilá-lo.
Ao contrário:
Plantei-o no trono do salão central do palácio que ergui para abrigá-lo, na capital do meu reino, no umbigo desta ilha que eu mesmo tornei eixo do mundo.
Que para ele convirjam todos os turistas, todas as rotas marinhas, todas as linhas aéreas, todos os cabos submarinos, todas as redes siderais.
Construí canais estradas viadutos ferrovias funiculares pontes túneis até o palácio;
depois, áditos pórticos limiares entradas umbrais aléias ânditos elevadores passagens escadas ombreiras travessas portas corredores servidões rampas porteiras vielas passadouros escadarias portões arcadas soleiras portelas caminhos galerias sendas portais veredas cancelas áditos pórticos limiares entradas umbrais aléias ânditos elevadores passagens escadas ombreiras travessas portas corredores servidões rampas porteiras vielas passadouros escadarias portões arcadas soleiras portelas caminhos galerias sendas portais veredas cancelas áditos pórticos limiares entradas umbrais aléias ânditos elevadores passagens escadas ombreiras travessas portas corredores servidões rampas porteiras vielas passadouros escadarias portões arcadas soleiras portelas caminhos galerias sendas portais veredas cancelas alamedas áditos pórticos limiares entradas umbrais aléias ânditos elevadores passagens escadas ombreiras travessas portas corredores servidões rampas porteiras vielas passadouros escadarias travessas portões arcadas soleiras portelas caminhos galerias sendas portais veredas cancelas áditos pórticos limiares entradas umbrais aléias degraus portinholas ruelas ânditos elevadores passagens escadas ombreiras travessas portas corredores servidões rampas porteiras vielas passadouros escadarias  portões arcadas soleiras portelas caminhos galerias sendas portais veredas cancelas alamedas áditos pórticos limiares


Eco

A pele salgada daquele surfista
parece doce de leite condensado.
Como seu olhar, o mar é narcisista
e, na vista de um, o outro é espelhado
e embora, quando ele dança sobre as cristas,
goste de atrair olhares extraviados
de banhistas distraídos ou artistas,
é claro que o mar é seu único amado.
Ei-lo molhado em pé na areia: folgado,
ao pôr-do-sol tem de um lado a prancha em riste,
do outro lado usa uma gata e um brinco e assiste
serenamente ao horizonte inflamado
e a brisa o alisa até que ele não resiste
à beleza e diz “sinistro!” e ouve eco ao lado.


Proteu

Helena jamais regressará.
Ao meio dia não sairá
ela mas Proteu do mar bravio.
Quem lá estará à espreita escondido?
Tu. Não mais aguardarás Helena.
Guarda o nome, quando muito: Helena,
mas abre os braços e enlaça o Velho
que sai da espuma: abraça o leão
que ele será, segura a serpente,
cinge o bólide e a água corrente,
engole a televisão e a mata,
sê por um bom tempo o que te tente
e para sempre nada: não pregues
coisa alguma no lugar do nada.


Templo

Para que as Musas residentes lá no Olimpo
façam meus poemas palavras que desejem,
eu que, à sombra de um deus muito mais triste, habito
a fralda de uma montanha muito mais verde,

declaro não serem os versos que escrevo obras
de arte mas bases, paredes e donaires
de templos construídos com mãos e com sobras
de paixões, mergulhos, fodas, livros, viagens

(precário material com o qual é elaborado
tudo o que merece aspirar a eterna glória)
e -- ainda com os seus andaimes -- os consagro
a elas, às filhas alegres da Memória,

deusa que não é, como querem crer os néscios,
a guardiã do passado, com o qual pouco
se importa, mas antes a que nos oferece o
esquecimento quando canta o imorredouro.


A cidade e os livros

para D. Vanna Piraccini

O Rio parecia inesgotável
àquele adolescente que era eu.
Sozinho entrar no ônibus Castelo,
saltar no fim da linha, andar sem medo
no centro da cidade proibida,
em meio à multidão que nem notava
que eu não lhe pertencia – e de repente,
anônimo entre anônimos, notar
eufórico que sim, que pertencia
a ela, e ela a mim –, entrar em becos,
travessas, avenidas, galerias,
cinemas, livrarias: Leonardo
da Vinci Larga Rex Central Colombo
Marrecas Íris Meio-Dia Cosmos
Alfândega Cruzeiro Carioca
Marrocos Passos Civilização
Cavé Saara São José Rosário
Passeio Público Ouvidor Padrão
Vitória Lavradio Cinelândia:
lugares que antes eu nem conhecia
abriam-se em esquinas infinitas
de ruas doravante prolongáveis
por todas as cidades que existiam.
Eu só sentira algo semelhante
ao perceber que os livros dos adultos
também me interessavam: que em princípio
haviam sido escritos para mim
os livros todos. Hoje é diferente,
pois todas as cidades encolheram,
são previsíveis, dão claustrofobia
e até dariam tédio, se não fossem
os livros incontáveis que contêm.



Aufklärung

A propósito do costume
talionador de executarem-se
os condenados nos lugares
em que se sabe ou se presume
terem cometido algum crime,
Montaigne pensa que os pobres-diabos
a caminho do cadafalso
mal tenham olhos para o tigre
da alvorada, a saltar do fundo
da noite e afundar na pintura
do dia.
Eis o sol: com a cara
na vidraça da van, calculo
o ouro diáfano e a doçura
dessa manhã que me afanaram.


Nênia

A morte nada foi para ele, pois enquanto vivia não havia a morte e, agora que há, ele já não vive. Não temer a morte tornava-lhe a vida mais leve e o dispensava de desejar a imortalidade em vão. Sua vida era infinita, não porque se estendesse indefinidamente no tempo mas porque, como um campo visual, não tinha limite. Tal qual outras coisas preciosas, ela não se media pela extensão mas pela intensidade. Louvemos e contemos no número dos felizes os que bem empregaram o parco tempo que a sorte lhes emprestou. Bom não é viver, mas viver bem. Ele viu a luz do dia, teve amigos, amou e floresceu. Às vezes anuviava-se o seu brilho. Às vezes era radiante. Quem pergunta quanto tempo viveu? Viveu e ilumina nossa memória.



Sair

Largar o cobertor, a cama, o
medo, o terço, o quarto, largar
toda simbologia e religião; largar o
espírito, largar a alma, abrir a
porta principal e sair. Esta é
a única vida e contém inimaginável
beleza e dor. Já o sol,
as cores da terra e o
ar azul – o céu do dia –
mergulharam até a próxima aurora; a
noite está radiante e Deus não
existe nem faz falta. Tudo é
gratuito: as luzes cinéticas das avenidas,
o vulto ao vento das palmeiras
e a ânsia insaciável do jasmim;
e, sobre todas as coisas, o
eterno silêncio dos espaços infinitos que
nada dizem, nada querem dizer e
nada jamais precisaram ou precisarão esclarecer.


Guardar
                                     
Guardar uma coisa não é escondê-la ou trancá-la. Em cofre não se guarda coisa alguma. Em cofre perde-se a coisa à vista.
Guardar uma coisa é olhá-la, fitá-la, mirá-la por admirá-la, isto é, iluminá-la ou ser por ela iluminado.
Guardar uma coisa é vigiá-la, isto é, fazer vigília por ela, isto é, velar por ela, isto é, estar acordado por ela, isto é, estar por ela ou ser por ela.
Por isso melhor se guarda o vôo de um pássaro
Do que pássaros sem vôos.
Por isso se escreve, por isso se diz, por isso se publica, por isso se declara e declama um poema:
Para guardá-lo:
Para que ele, por sua vez, guarde o que guarda:
Guarde o que quer que guarda um poema:
Por isso o lance do poema:
Por guardar-se o que se quer guardar.

Um comentário:

  1. SONETO EM MARROM

    Marrom nasce mestiço, pé no chão.
    Curvado, recurvado à exaustão.
    Hora de acordar, meu tom. vamos lá!
    Rosquinhas de canela para o chá.

    Mulato se hospedou no hotel barato,
    com baratas. Morreu durante o ato.
    Era fã da Alcione. Que pecado!
    Marrom é rapadura com melado.

    Os charutos, a lata enferrujada.
    A Fase Anal: cocô, fezes, titica.
    Meu Deus, que retenção! Só Freud explica.

    Gente dorme no chão, toda embolada.
    A beleza do lixo? Disparate!
    Mas. no fim, tudo cheira a chocolate.



    SONETO EM ROSA

    Rosa chega querendo mais romance,
    rosa choque chocando, provocante.
    Bombom Sonho de Valsa. Que fissura!
    E meus sonhos se rompem na costura.

    Rosa é cor rendada, confeitada.
    Doce final feliz, contos de fada.
    Mas viveram felizes para sempre?
    Rosa, quem não conhece que te compre.

    Chiclete tutti-frutti mastigado.
    Rosa envelhece, mas guarda a menina,
    gestos suaves, quase bailarina.

    Cor com muito estrogênio concentrado,
    ama o inesperado, corre risco.
    Pensa pink: ´´Eu faísco, logo existo!``



    SONETO EM BRANCO

    Branco é cor totalmente iluminada:
    reivindica seu brilho e o compartilha.
    Cocaína, só aqui é liberada.
    Quantas gramas me cabem na partilha?

    Nuvens brancas passando em brancas nuvens,
    lua e luar surfando sobre as ondas.
    Coisas limpas, sem manchas ou ferrugens.
    Paz, enfim. Fim das guerras, fim das bombas.

    Página em branco, calda açucarada.
    Asa Branca, a beleza do seu canto.
    Último ano da infância que se vai ...

    A pipoca, que espoca, está salgada.
    A alma está lavada. Que mais? Deu branco ...
    Que baixe o santo. Saravá meu pai!



    SONETO EM CINZA

    Cinza não sabe ao certo o que quer ser.
    Cor das nuvens pouco antes de chover,
    das pedras açoitadas pelo vento.
    Erosão, intempéries, o tempo.

    Sombrio, reservado, cor sem cor.
    Sol oculto guardando o seu calor.
    Feroz sobrevivência em selva urbana
    e a mesmice se instala soberana.

    De cimento nasce, cresce e aparece.
    Desconhece o que fica alem do muro
    cinza claro pichado em cinza escuro.

    Falta coragem. Não se compromete:
    branco puxa prá cá, preto prá lá
    e o cinza mal sai do lugar. Voilà!

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